A HISTÓRIA DA CANNABIS MEDICINAL

Os primeiros registros sobre o uso da maconha com fins medicinais remonta ao ano 2737 AC e ao imperador ShenNeng da China, que prescrevia chá de maconha para o tratamento da gota, reumatismo, malária e, por incrível que pareça, memória fraca.

A popularidade da maconha como remédio espalhou-se pela Ásia, Médio Oriente e costa oriental da África. Seitas hindus, na Índia, usavam maconha para fins religiosos e alívio do stress. Médicos da antiguidade prescreviam maconha para tudo, desde o alívio da dor de ouvido, até às dores do parto. Os médicos da época também advertiam que o uso excessivo da maconha poderia provocar impotência, cegueira e alucinações.

 

70 AC. O médico Pedânio Dioscórides, Greco-Romano, considerado o fundador da farmacologia, publicou na sua obra “De Materia Medica”, a principal fonte de informação sobre drogas medicinais, desde o início do século I até o século XVIII. Entre as mais de mil substâncias vegetais descritas e distribuídas em grupos terapêuticos, a maconha medicinal era indicada como tratamento eficaz para dores articulares e inflamações.

 

1464.  Há séculos o uso da maconha medicinal já era prescrita no Médio Oriente. Um dos primeiros relatos de casos, considerando a maconha para tratamento de epilepsia, foi de autoria de Ibnal-Badri. Em Bagdá, Al-Bradi descreveu um tratamento eficaz administrado por um poeta, para controle das crises epiléticas do filho do camareiro do Califa, com haxixe.

 

1808. A maconha foi levada para o Brasil por escravos africanos, ainda durante o período colonial. Disseminou-se entre os índios, e mais tarde entre os brancos, tendo a sua produção sido estimulada pela coroa. Até a rainha Carlota Joaquina habituou-se a tomar chá de maconha depois da corte portuguesa se ter mudado para o Brasil.

 

1839. Neste ano, uma mulher bateu à porta de um médico do exército britânico, chamado William O’Shaughnessy, que trabalhava na Índia. A sua filha estava tendo convulsões continuas e precisava de ajuda. O médico tentou várias soluções disponíveis na medicina tradicional do século XIX, incluindo ópio e sanguessugas, mas as convulsões pioravam a tal ponto que o bebê parou de comer, convulsionando quase constantemente. Sem saber mais o que fazer, o médico tentou o cânhamo, que os moradores locais usavam como medicamento polivalente. Após algumas gotas de uma tintura canábica sob a língua da criança os ataques em pouco tempo começaram a diminuir. “O bebê agora parece que está bem”, relatou O’Shaughnessy no artigo do jornal médico intitulado “Sobre a preparação de Indian Hemp ou Gunjah”, onde se concluiu que a maconha medicinal era um remédio anticonvulsivo de grande valor. A partir daí a maconha medicinal cresce no Continente Europeu.

 

1889. O artigo do PhD. EA Birch na revista The Lancet, uma das principais revistas médicas Mundiais, delineou a aplicação da Cannabis Sativa L. para o tratamento de dependência ao ópio. A erva reduziu o desejo do ópio e agiu como um antiemético. Nos anos seguintes a maconha consolidou-se como medicamento nos EUA e na Europa.

 

Inicio do Sec. XX

Consumida como hábito popular por Árabes, Chineses, Mexicanos e africanos, minorias que eram socialmente discriminadas na época, a maconha passou a ser vista preconceituosamente por uma elite moralista, muitas vezes estimulada pela indústria concorrente do cânhamo (Cannabis Sativa L. que produz poucos canabinoides e alto teor de fibras). A fibra do cânhamo, natural e muito resistente, é forte concorrente para a indústria do petróleo, algodão e das fibras sintéticas.

Até ao Sec XX, o cânhamo foi o material utilizado para confeção do tecido da maioria das telas utilizadas pelos grandes artistas. Na expansão do Imperialismo, os Europeu navegaram com velas e cordas produzidas a partir das fibras de cânhamo.

Por outro lado, o prazer proporcionado pelo uso recreativo e ritualístico da maconha, além de ser concorrente da poderosa indústria do álcool, sofreu preconceito religioso, moralista e social.

 

1905. Circulava a ideia de que a maconha podia ser usada para fins medicinais, o que já acontecia na Europa. A propaganda das cigarrilhas Grimault, em 1905, anunciava que a maconha medicinal serviria para tratar desde a asmas e catarro à roncadura.

 

1924. Difundia-se mundialmente a tese de que o consumo da maconha era um mal. Tendo nesta época um médico brasileiro um papel bastante importante nessa história. Pernambuco Filho, em conferência promovida pela “Liga das Nações” em Genebra, associou o uso da maconha ao danoso uso do ópio, um dos maiores problemas de saúde pública da época. Ele nunca havia defendido tal afirmação, mas a sua palestra foi muito importante no proibicionismo mundial nos anos seguintes, segundo Prof. Dr. Elisaldo Carlini (UNIFESP)

 

1961. A ONU determinou que as drogas aram prejudiciais para a saúde e o bem-estar da humanidade e, portanto, eram necessárias ações coordenadas e universais para por termo ao seu uso. Por isso, o uso medicinal da maconha foi fortemente suprimido, deixando pacientes e cientistas longe da maconha. Essa proibição contribuiu para o enriquecimento da indústria bélica interessada na manutenção de conflitos armados e deu-se início à guerra contra as drogas.

 

1963. Mesmo com toda a proibição nos EUA e na Europa, o Prof. Dr. Raphael Mechoulam, do Departamento de Química Medicinal e Produtos Naturais, da Escola de Medicina da Universidade Hebraica de Jerusalém, isola o canabidiol (CBD) e no ano seguinte, o delta 9-tetrahidrocanabinol (THC).

 

1981. O Prof. Dr. Elisaldo Carlini (UNIFESP) publica no J ClinPharmacol[1981 Aug-Sep;21(8-9 Suppl):417S-427S], os resultados de um estudo efetuado sobre oito pacientes, comparados com sete controles onde comprovou o efeito benéfico do CBD no controle das crises convulsivas.

 

1999. Sistema endocanabinoide começa a ser elucidado pela ciência. Após a descoberta dos canabinoides internos, produzidos pelo próprio corpo humano, anandamida (N-araquidoniletanolamida) e 2-araquidonilglicerol (2-AG), dos recetores de canabinoides CB1 e CB2, e das enzimas relacionadas com o seu metabolismo, a comunidade científica focou-se na investigação do seu potencial clínico, com resultados encorajadores em muitas áreas. Os recetores canabinoides são identificados em várias células e sistemas, além do sistema nervoso central, e a ciência avança na área da imunologia e oncologia.

 

2007. Lançamento do livro Maconha, Cérebro e Saúde, dos neurocientistas Renato Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro. O lançamento do livro conjuntamente com os contínuos esforços de grupos brasileiros, sobretudo os ligados ao CEBRIDE, no sentido de divulgar para a sociedade o entendimento do sistema endo canabinoide e seu potencial medicinal, fez conque o livro tivesse um grande impacto tanto no meio acadêmico como no público em geral, tendo a sua primeira edição esgotado por completo servindo como que um dos pilares para o desenvolvimento do roteiro do documentário Cortina de Fumaça, de Rodrigo Mac Niven.

 

2010. O documentário “Cortina de Fumaça” de Rodrigo Mac Niven para além de passar no Brasil roda por todo o mundo em diversos festivais de cinema internacionais, atinge mais de 300.000 visualizações no YouTube. O documentário teve grande repercussão nacional e internacional trazendo para a ribalta uma abordagem multidisciplinar aprofundada e francamente inovadora sobre o uso medicinal da maconha, e sobre os problemas advindos da proibição da planta.

No mesmo ano, a prisão do baterista da banda de reggae “Ponto de Equilíbrio” levou um grupo de neurocientistas da diretoria da Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento a iniciar na mídia impressa um intenso debate, com trocas de textos sobre a regulamentação dos usos da maconha. O episódio culminou com a realização de um debate presencial no auditório do jornal Folha de São Paulo no final de 2010. Participaram do debate o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, a juíza Maria Lúcia Karan e os neurocientistas, Sidarta Ribeiro e Renato Malcher-Lopes. O evento foi filmado por Rodrigo Mac Niven e disponibilizado no Youtube, onde obteve expressiva audiência.

 

2012. Charlotte Figi, uma menina americana com 5 anos de idade, portadora de síndrome de Dravet (que determina epilepsia refratária), teve uma historia de sucesso no controle de crises convulsivas, com o uso de um óleo rico em CBD, produzido a partir de uma cepa de Cannabis Sativa L. O poder da internet acabou por espalhar mundialmente o sucesso de Charlotte.

 

2013. O impacto do filme “Cortina de Fumaça” deu origem ao primeiro Congresso Internacional de Drogas, Lei, Saúde e Sociedade tendo reunido mais de 40 oradores vindos da Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Portugal e Uruguai. Além de profissionais de diversas áreas, ativistas, usuários e pacientes que tiveram pela primeira vez, voz e lugar de destaque num evento desta envergadura. O congresso ocorreu no Museu Nacional da República, em Basileia, e foi considerado o maior congresso sobre inovação de política de drogas alguma vez realizado na América Latina.

 

2014. Anny Fisher, uma menina brasileira com 5 anos de idade, portadora da síndrome CDKL5 (que também determina um quadro de epilepsia refratária), também tem uma história de sucesso no controle de crises convulsivas, com o uso de um óleo rico em CBD. O sucesso de Anny acabou contagiando outros pais e mães pelo Mundo inteiro, e as histórias de controle de crises convulsivas têm-se multiplicado.

 

2017. Quase todos os Estados-Membros da União Europeia permitem — ou estão a considerar permitir — a utilização da Canábis (ou de canabinóides) para fins medicinais. Há, porém, diferenças na abordagem entre diferentes países, quer nos produtos permitidos quer no quadro legal que os rege.

 

2018. A 18 de julho de 2018, com a Lei nº33/2018, estabeleceu-se o quadro legal para a utilização de medicamentos à base de Canábis para fins medicinais, e o Decreto-Lei nº8/2019, de 15 de janeiro, veio proceder à sua regulamentação.

Este quadro legal teve como objetivo tornar acessível o tratamento com medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis garantindo:

  • que as preparações disponibilizadas cumprem todos os requisitos necessários no que concerne à demonstração da respetiva qualidade e segurança, contribuindo dessa forma para a salvaguarda e proteção da saúde pública e
  • a prevenção do uso indevido de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis de acordo com a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas.

Assim, toda a cadeia de produção, desde o cultivo da planta à sua preparação e distribuição, é conhecida e controlada, sendo possível garantir que os produtos são produzidos de acordo com todas as boas práticas e requisitos aplicáveis.

Garante-se, deste modo, que os doentes têm acesso a produtos que demonstraram a respetiva qualidade e segurança, não sendo expostos a riscos desnecessários e evitáveis, prevenindo o seu uso indevido e limitando a sua utilização a casos em que os tratamentos convencionais não produziram os efeitos esperados ou provocaram efeitos adversos relevantes.

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